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O difícil regresso à escola

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Foi há quase dois meses que a rotina se virou do avesso. Acabou-se o frenesim matinal para chegar a tempo da creche ou do jardim de infância, as horas de brincadeira com os amigos, as idas ao parque e a disputa pelo lugar no baloiço e pela descida no escorrega. O vírus que anda lá fora não o permitia. Em compensação, deixou de faltar o tempo para estar com os pais, agora presentes 24 sobre 24 horas. E a segurança foi mantida entre as quatro paredes de casa, com os contactos reduzidos ao mínimo. Agora que chegámos ao desconfinamento, é preciso fazer o caminho inverso. Mas os primeiros passos não são fáceis.

Há pais que têm medo que as suas crianças fiquem doentes ao regressar às creches — a abertura será a 18 deste mês —, ou que infetem os seus familiares adultos, ou que algo de mal aconteça aos seus, apesar de a evidência até agora recolhida mostrar que a pandemia poupa as crianças em termos de evolução dos sintomas.

“No Hospital de Dona Estefânia tivemos cerca de 90 crianças internadas com covid-19 e temos dois casos nos cuidados intensivos. Tem corrido bem. Mas ninguém pode garantir que vá sempre correr bem. Esta reabertura gradual é a solução possível e equilibrada entre o retorno à atividade económica e a proteção sanitária. Se a preocupação fosse apenas de saúde, então as crianças continuariam confinadas”, resume Gonçalo Cordeiro Ferreira, diretor da área de pediatria médica do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central e presidente da Comissão Nacional de Saúde Materna, da Criança e do Adolescente.

Nos consultórios dos pediatras, as perguntas repetem-se. É seguro regressar às creches? Que cuidados vou precisar de ter? “São decisões difíceis. O risco para as crianças e pais, em termos de gravidade da doença ou de morte, é ínfimo. A questão coloca-se mais ao nível de serem potenciais transmissores. Só que, além dos dados factuais e objetivos, há um enorme território do que não sabemos e outro igualmente grande que são os receios e a avaliação subjetiva da situação e dos interesses em conflito. Quando me perguntam, tento esclarecer, mas sobretudo tento entender, nunca emitindo juízos de valor”, explica o pediatra Mário Cordeiro.

A VANTAGEM DA PRIMAVERA

Para Hugo Rodrigues, também pediatra e autor do site “Pediatria para Todos”, no caso dos pais que não têm necessidade imediata de pôr os filhos na creche, adiar a decisão por mais um tempo será o mais avisado. Por duas razões: “Permite avaliar a evolução da situação e facilitar a implementação das medidas nas creches, que podem assim começar a funcionar com grupos mais pequenos e com maior distanciamento.”

E há também o caso das crianças mais vulneráveis, em particular as que têm dificuldades respiratórias. “Antes de regressarem, devem contactar os seus pediatras e alergologistas”, aconselha o especialista nesta área e médico no Hospital de Dona Estefânia Nuno Neuparth. Sendo certo que há uma regra de ouro dentro das salas: é preciso arejar os espaços, abrir janelas e evitar sempre a ventilação artificial, como o ar condicionado.

De resto, há situações que nem vale a pena pensar que se aplicam a crianças destas idades. Já se sabe que as máscaras só serão obrigatórias nas escolas a partir dos seis anos e que garantir sempre o distanciamento ou evitar a partilha de brinquedos entre os mais pequenos é uma ilusão. “As crianças não podem ficar separadas. Inevitavelmente acumulam-se umas sobre as outras. Se assim não for, corremos o risco de as creches transformarem-se numa espécie de canil”, avisa Gonçalo Cordeiro Ferreira. O reverso da medalha é o risco de aumento de contágio. “Se já todos chamámos ‘infectários’ aos infantários, então é óbvio que a preocupação existe. Cabe às escolas fazerem o que puderem. Mas também aos pais velarem para que as eventuais hipóteses de transmissão do vírus diminuam”, defende Mário Cordeiro.

Mas se há uma altura boa para experimentar o regresso é agora. Não só o vírus da gripe não circula na primavera e no verão, como as crianças podem estar praticamente todo o tempo ao ar livre. “O risco de contágio é claramente mais baixo no exterior e o vírus é muito sensível aos raios ultravioleta”, indica Gonçalo Cordeiro Ferreira.

O risco de voltar à escola é o risco de viver em comunidade. Vamos ter de nos habituar a viver com esta nova realidade. Este vírus veio para ficar

Na quinta-feira, durante a conferência diária da Direção-Geral da Saúde, a diretora, Graça Freitas, apelou à confiança dos pais nas medidas que estão a ser tomadas pelas autoridades para minimizar os riscos de um regresso às escolas (Como será no 11º e 12º), lembrando, no entanto, que em nenhuma situação existe proteção total. “O risco de voltar à escola é o risco de viver em comunidade. Vamos ter de nos habituar a viver com esta nova realidade, este vírus veio para ficar e o que temos de fazer é cumprir as regras para nos protegermos.”

A verdade é que as semanas foram passando e é sobretudo em casa que as crianças têm ficado. Felizes da vida por estarem com os pais. Mas também com manifestações de uma alteração profunda das rotinas. Há mais idas para a cama dos pais durante a noite, mais birras, mais acidentes com chichi. E voltar para a escola pode não ser o que mais lhes apetece agora.

“O Gabriel nunca pergunta quando vai poder voltar. Apenas fala de vez em quando dos três amigos que lá tem. No outro dia encontrámos a educadora de infância no jardim e ele fingiu que não a conhecia. E ele até se dava particularmente bem com ela”, conta o pai da criança, de três anos. Mas estes são comportamentos facilmente reversíveis, acredita Hugo Rodrigues: “Dois meses têm pouca expressão num processo de desenvolvimento que se desenrola ao longo de anos. Não me parece que os pais precisem de se preocupar com efeitos negativos que perdurem. É importante que vejam esta adversidade também como uma oportunidade para terem mais tempo de qualidade com os filhos.”

“Temos de ser inventivos e criativos, porque esta situação, com altos e baixos, ainda vai perdurar. Insisto com os pais para saírem e darem os chamados passeios higiénicos, que podem ser feitos com calma, alegria e sem risco nenhum”, aconselha Mário Cordeiro.

Da parte dos responsáveis das instituições já se prepara o regresso. Só que nem todas as creches irão conseguir abrir, alerta Susana Batista, presidente da Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos do Ensino Particular (ACPEEP). De um inquérito a 88 associados da ACPEEP, 12 já disseram que não vão reabrir a 18 de maio, já que os custos de funcionamento — que passam por retirar os funcionários do lay-off — e o investimento necessário (em material e equipamento de proteção) não são compensados por uma procura tão reduzida.

Há pais com receio, mas há também os que, não tendo jardins de infância e escolas primárias onde deixar os filhos mais velhos, continuam a ter de ficar em casa, critica a presidente da associação, que tem defendido a abertura em simultâneo destes níveis de ensino.

A IMPORTÂNCIA DE TESTAR

Já entre as creches do sector solidário o cenário é mais otimista, indica Lino Maio, presidente da Confederação Nacional das Instituições Particulares de Solidariedade Social. Entre as mais de mil creches sondadas, responderam cerca de 60%, relatando uma adesão significativa dos pais a esta primeira fase de reabertura. O Estado manterá o apoio que dá às famílias com crianças até aos 12 anos até ao final do mês. “Há pais que irão poder continuar com os filhos em casa. Será, por isso, um regresso a meio gás”, antecipa.

Ao todo, existem 2400 creches no país, frequentadas por mais de 100 mil crianças e onde trabalham 29 mil funcio­nários. Esta semana iniciou-se o plano de testes de diagnóstico a todos eles, tal como está a ser feito nos lares, e que deve estar concluído até ao próximo fim de semana, a tempo do primeiro passo de reabertura das instituições que cuidam das crianças.

Só que esta é uma preocupação que terá de continuar ao longo do tempo, avisa o virologista Paulo Paixão. “Ao menor sintoma, há que testar as crianças, os cuidadores e as famílias. E tem de haver grande capacidade de comunicação e interação com as autoridades de saúde. Isto para que não surjam focos de transmissão como aconteceu em alguns lares. Testar, testar, testar é o ponto crucial.”

Se tudo correr bem, a 1 de junho será a vez de abrirem jardins de infância e centros de atividade de tempos livres. Já a 18, voltam às aulas os alunos do 11º e do 12º.

Fonte: Expresso