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Manuais digitais vão avançar. Dos livreiros aos sindicatos, dos pais às escolas, há dúvidas e uma certeza: “Não cometam o erro do Magalhães”

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O secretário de Estado da Educação explica que quer “fazer uma transição que não é experimentalista e que foi preparada com uma capacitação para aquilo que podem ser os obstáculos”. O objetivo, segundo o governante, é alcançar resultados o mais positivos possível, porque, como diz, se, por exemplo, “o próprio professor não conseguir explorar amplamente as capacidades dos recursos digitais, eles podem ser ou relativamente inúteis ou, até, não serem um bom substituto do papel”.

O grupo de dez escolas consta de uma lista que o próprio diz ainda não estar fechada, mas que terá “diferentes contextos geográficos, diferentes cenários socioeconómicos de implantação da própria escola”.

João Costa sublinha que se poderá tentar uma desmaterialização dos manuais já em setembro, “para servirem também um pouco de tubo de ensaio para a escalagem para todos os agrupamentos de uma forma progressiva”.

O pai do computador Magalhães e a digitalização dos manuais escolares e do ensino

Jorge Sá Couto, administra a JP Group, que “explodiu” no mundo dos negócios a nível internacional com o impulso dado no governo de José Sócrates com o pequeno portátil “Magalhães”: 500 mil unidades vendidas ao Estado para distribuição aos alunos, faz uma dúzia de anos.

Alguns destes computadores ainda resistem. Muitos, pouco tempo depois de atribuídos aos alunos, acabaram por ser vendidos pelos pais que os adquiriram, nalguns casos através de uma pequena contribuição ou de forma gratuita.

Para a então JP Sá Couto foi um impulso definitivo para um salto maior, onde se assume como um “jogador” eficaz na digitalização mundial ligada ao ensino.

Jorge Sá Couto não tem dúvida de que “Portugal vai voltar novamente a essa área”. E se dúvidas houvesse, fica o aviso à concorrência: “Nós, obviamente, teremos uma palavra a dizer. Por tudo o que fizemos até hoje, pelo nosso passado, é inevitável que a JP, sendo um ‘player’ internacional, obviamente o será também no nosso país, e obviamente teremos todo o prazer em participar nalguma iniciativa em Portugal”.

E se assim for, Jorge Sá Couto desenha o que devem ser os equipamentos, digamos, de um futuro “Magalhães”.

“Deve ser um portátil. Isso por razões muito objetivas. Claro que para o ensino pré-primário pode ser um tablet, uma vez que é mais para consumo de conteúdos.” Mas seria esta a exceção. Os restantes devem ter acesso a um computador, com manuais digitais, na memória residente ou numa memória na “nuvem”. Jorge Sá Couto justifica que a empresa considera que na educação “é importante haver criação e produtividade, e isso só é possível com um computador”.

A atenção aos exemplos que vêm de fora é decisiva nesta avaliação. “É a nossa visão, e também a de muitos países, que na época áurea dos tablets optaram pelos tablets, mas fizeram a correção certa e voltaram para os computadores.”

Editores e livreiros são os maus da fita?

Para empresas como a Porto Editora, a venda de manuais escolares representa uma parcela de negócio extremamente importante. Manuais em papel é o que mais se vende, com uma rotação incrível até à decisão do Governo para serem reutilizados.

Serão então as editoras o “grão de areia” que emperra a engrenagem da digitalização dos manuais escolares? Ou, pelo contrário, as editoras são a força motriz que está a impulsionar o processo?

Responde Paulo Gonçalves, porta-voz da Porto Editora, que as editoras são afinal “a verdadeira força motriz”. “Têm sido as editoras, em especial a Porto Editora, a liderar todo o trabalho de inovação e desenvolvimento de soluções educativas em formato digital. E não o faz desde ontem. Faz há mais de uma década. A Escola Virtual tem 15 anos de actividade”, explica.

Os “pergaminhos” a que se refere Paulo Gonçalves não são em papel; são digitais. Foi na véspera do final do segundo período de aulas que se provou a “eficácia” do longo processo da Escola Virtual, explica Paulo Gonçalves: “Eram 21h30 quando o Governo anunciou o fecho das escolas. Cinco minutos depois a Porto Editora estava a anunciar a abertura totalmente gratuita para mais de um milhão de alunos, professores e encarregados de educação da sua plataforma Escola Virtual.”

Desde esses primeiros cinco minutos, há poucos meses, e até ao dia de hoje, a Escola Virtual pura e simplesmente cresceu de forma esmagadora, diz Paulo Gonçalves. “Quando nessa altura fizemos esse anúncio a Escola Virtual tinha 200 mil utilizadores. Hoje tem mais de um milhão de utilizadores registados.”

Com tantas “torneiras digitais” a abrirem-se em milhares de lares, a Porto Editora teve também de abrir os cordões à bolsa e gastar alguns milhares para não furar expectativas e conseguir estabilizar os acessos à Escola Virtual.

Se a Porto Editora está pronta para um futuro que ainda não chegou à maior parte dos alunos portugueses, é importante saber se os manuais, por serem digitais, acabam por ser mais baratos que em papel. Acabam? Desengane-se.

“Nesta lógica do conteúdo digital, há o mito de que por ser intangível, ou seja, por não haver um objeto físico, não nos permite aperceber do valor do trabalho. A verdade é que o digital tem outras implicações em termos de investimento que é muito, muito, muito significativo e muito maior do que aquele que existe no formato tradicional de papel”, esclarece Paulo Gonçalves.

Mas sublinha que “ainda assim a perspetiva desta empresa, e do sector editorial, é que os preços não reflitam este tipo de investimento”.

Contudo, é bom lembrar que os livros pagam IVA a 6% e os produtos digitais a 23%.

Responsabilizar as famílias para os novos “Magalhães” não irem para o lixo

De entre os vários atores do sector da educação, a Confap, Confederação das Associações de Pais, é a que representa diretamente os interesses de alunos e encarregados de educação.

Jorge Ascensão é muito claro: não quer ver repetidos erros que se constataram na atribuição dos “Magalhães” a novos suportes e meios digitais que venham a ser disponibilizados com o dinheiro de todos. É nesse sentido que afirma à Renascença que espera “que não se cometa o erro que se cometeu com o Magalhães, que foi atribuir diretamente a famílias que não se responsabilizaram por eles e, depois, evaporaram-se todos os recursos”.

Para o responsável da Confap, “os recursos deviam ter sido dados às escolas, era assim que devia ter sido”. Por isso desafia o Governo a pensar bem a medida para não se estar a mandar fora este tipo de recursos. “Porque quando estamos a falar da Acão Social Escolar, estamos a falar de uma heterogeneidade de famílias, nas suas culturas, expectativas, anseios, forma de encarar e responsabilizar por aquilo que é disponibilizado pelo Estado. E há, portanto, todo um trabalho a fazer, para que haja esta responsabilização sobre aquilo que todos nós estamos a dar com os nossos impostos”, conclui.

Estudem bem para não se perder mais uma oportunidade, desafia a Fenprof

Mário Nogueira dispensa apresentações. Tem sido o rosto da contestação pela reposição das carreiras dos professores e conhece os problemas da escolas e dos docentes como poucos. Sobre a desmaterialização dos manuais escolares, defende: “É um trabalho que tem de ser feito com muito rigor, com muito cuidado, que tem de ser continuado, e que antes de começar, antes de dizer ‘agora vai ser assim’, devia conhecer-se o tempo e os planos para fazer isso. Porque, se não, é uma aventura de que podem resultar consequências nada positivas, nada favoráveis daquilo que se quer da escola, que é que tenha qualidade, mas seja um espaço de promoção e igualdades entre alunos – e que não agrave ainda mais as desigualdades que já existem”.

Para Mário Nogueira há muitos anos que a educação parece andar a reboque dos dinheiros de Bruxelas. Por isso, mistura dois exemplos: “Seja com o Magalhães, seja a remoção do amianto nas escolas – uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas têm a ver com a decisão –, as medidas e as decisões, de algum tempo a esta parte, dependem dos programas comunitários de financiamento e do que é elegível para financiamento”.

É grave a conclusão a que chega o secretário-geral da Fenprof. “O grande problema é que por vezes os programas de financiamento comunitário apontam num sentido. E esse sentido é, por exemplo, a digitalização, a desmaterialização dos manuais escolares. E agora há um programa desses, mas depois muda o quadro comunitário, mudam as elegibilidades, mudam as prioridades de financiamento, e tudo o que está para trás cai. E passamos a falar de outra coisa”.

A digitalização e a poupança de árvores segundo Francisco Ferreira

A Associação Ambientalista Zero foi desafiada pela Renascença para avaliar o impacto anual no ambiente da produção de manuais escolares em papel. Francisco Ferreira pesou mochilas, multiplicou pelo número de alunos dos três ciclos do ensino básico e apresenta os resultados.

– “Só em cadernos, estamos a falar de quase 6.200 toneladas.”

Qualquer encarregado de educação está ciente do peso das mochilas dos alunos. E se no imediato, pensa e bem, nos efeitos negativos que isso vai ter na saúde do estudante, provavelmente talvez não saiba que, todos os anos, para produzir em Portugal manuais escolares em papel, é necessário abater uma floresta de “92 hectares, quase 100 mil árvores para produzir este papel, e consumir 30 milhões de litros de água”, confirma o ambientalista.

Francisco Ferreira vê com bons olhos uma transição para o digital. Pelo menos, uma transição parcial para formatos digitais, o que, no seu entender, “pode implicar alguns gastos do ponto de vista energético e dos materiais”. “Ou seja, do computador ou do tablet, mas que tem uma utilização diversificada e que, sem dúvida, há do ponto de vista ambiental um balanço positivo.”

Professores vão ter de ter formação para a desmaterialização e digitalização.

Maria João Silva é professora na Escola Superior de Educação. Ensina a jovens adultos a profissão de professor. A pandemia obrigou-a, e aos seus alunos, a adaptarem-se a trabalhar à distância. A resposta foi diversa, a consequência a mesma: trabalharam mais, aprenderam todos sob stress – e claramente adquiriram todos mais competências.

Maria João Silva olha para o futuro e diz que “com ou sem pandemia, o que pode acontecer é passarmos a ter um ensino combinado, uma parte à distância e outra presencial, seja por necessidade ou seja pela potencialidade destas atividades que desenvolvem autonomia”.

E nesse futuro, “as competências para o século XXI necessitam das competências digitais e a passagem dos manuais irá integrar-se neste objetivo mais amplo de preparar as relações para a digitalização e para o trabalho com as tecnologias de comunicação e informação”, observa.

Não nega que há professores mais aptos para essa mudança e outros menos aptos. Sendo certo que “com novos recursos universais para a escola, sem dúvida que vai ser necessário formar docentes – e isso está planeado pelo Governo”.

Maria João Silva vê a desmaterialização dos manuais escolares mais do que com bons olhos; vê como algo que é necessário.

Defende os tablets, porque “permitem o trabalho colaborativo e são menos exigentes em termos tecnológicos”. Mas insiste que o papel é, e continuará a ser, “fundamental” na educação.

O exemplo que vem da Boa Água

A escola básica integrada da Boa Água fica na Quinta do Conde, concelho de Sesimbra. Há cinco anos deu um passo determinante nas novas tecnologias adaptadas à educação. Os resultados são muito positivos, nas competências e no sucesso escolar.

Nuno Mantas é o diretor desta escola e sublinha que desde 2015 que sabe, na prática, que há vantagens e desvantagens nos manuais escolares digitais.

Uma das vantagens “é o acesso direto a conteúdos que os manuais tradicionais não permitem”. Para além das vantagens obvias na poupança de papel e do ambiente.

Pela sua experiência, quanto mais cedo as novas tecnologias fizerem parte da vida dos alunos, mais rapidamente vão ser visíveis os resultados.

O projecto “EduLabs” foi o tiro de partida para esta escola, um dos poucos bons exemplos existentes das novas tecnologias adaptadas ao ensino público em Portugal. Agora a escola da Boa Água aventura-se em novos passos, mas sempre de braço dado com o digital.

RR