Início Sociedade Internet já é a melhor amiga dos nossos filhos. E depois?

Internet já é a melhor amiga dos nossos filhos. E depois?

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O vídeo musical tem menos de três minutos e um refrão inesquecível. Chama-se ‘Bath Song’ — a ‘Música do Banho’ — e já foi reproduzido mais de 2,25 mil milhões de vezes no YouTube. É o vídeo mais visto do canal “CoCoMelon Nursery Rhymes & Kids Songs”, por sua vez o segundo canal do YouTube com mais subscrições e visualizações do mundo inteiro. Está à frente do canal “Ryan’s World”, um rapaz de oito anos que avalia brinquedos e que tem a atenção de 23,5 milhões de subscritores. “El Reino Infantil”, um grupo de canções infantis em espanhol, tem 29,5 milhões. Faz sentido os conteúdos direcionados às crianças terem este peso: em cada três utilizadores da internet, um é uma criança. E o YouTube é a maior porta de entrada, ao ponto de em 2015 ter sido criado o “YouTube Kids”, com conteúdos só para crianças até aos 12 anos.

“O primeiro contacto com a internet acontece quase sempre através de vídeos musicais e educativos”, diz ao Expresso Cristina Ponte, professora na FCSH da Universidade Nova de Lisboa e especialista em Crianças e Media. O objetivo é entreter mas também ensinar. “Dão mais atenção às componentes visuais e auditivas” na hora de escolher o conteúdo, e daí o gosto por desenhos animados: para 79% das crianças portuguesas entre os 3 e os 8 anos essa era a principal atividade online, segundo o estudo “Crescendo entre Ecrãs”, publicado em 2017. Só 8% das crianças inquiridas disseram “ler livros de histórias digitais” pela internet, mas 40% já admitiam procurar informação na web, e já 12% falavam com familiares e amigos por videochamada.

AS ATIVIDADES ONLINE VÃO-SE DIVERSIFICANDO AO RITMO DA ADOLESCÊNCIA, MAS OS DADOS MOSTRAM QUE AS TAREFAS QUE EXIGEM COMPETÊNCIAS TÉCNICAS — FAZER VÍDEOS OU MÚSICAS PRÓPRIAS, POR EXEMPLO — SÃO SEMPRE UMA MINORIA

Nesta faixa etária (3-8 anos) os jogos tornam-se um hábito pouco a pouco, explica Cristina Ponte. Ainda nos telemóveis e tablets dos pais, “primeiro surgem os jogos educativos, que depois levam ao download de jogos gratuitos mais de puro entretenimento. Por norma isto é negativo, porque se são gratuitos significa que estão carregados de publicidade de tudo e mais alguma coisa.”

Até aos 8 anos a internet serve para apresentar e explicar o mundo à criança, mas depois as opções multiplicam-se. “As redes sociais surgem por volta dos oito, nove anos. Começam a querer ter um perfil próprio e a comunicar com os colegas da escola”, assinala Cristina Ponte. Sobre o universo das redes sociais, diz que os jovens estão a apostar na instantaneidade de aplicações como o Instagram e o Snapchat, mas que preferências mudam de um momento para o outro. “Enquanto investigadores estamos constantemente a correr atrás das novas tendências juvenis.” Dá dois exemplos opostos: o Facebook, “por já não interessar às crianças e ser hoje uma rede social para adultos”; e o TikTok, a aplicação chinesa que permite criar e partilhar vídeos curtos, cuja popularidade cresceu de forma rapidíssima nos últimos anos — conta já com 500 milhões de utilizadores em todo o mundo, incluindo Portugal.

Um estudo da OFCOM, o regulador de comunicações britânico, aponta que 77% das crianças entre os 8 e os 11 anos têm no YouTube a plataforma preferida — sobretudo para ver “vídeos engraçados” e de partidas (75%), e ver vídeos de música (58%). Na faixa etária seguinte (12-15) as preferências mantêm-se. Ou seja: os vídeos e músicas do YouTube não perdem terreno, apenas passam a estar acompanhadas pelas redes sociais e pelos jogos. Os smartphones e os tablets são os meios de eleição, e continuam a sê-lo ao longo da infância. Segundo o estudo “Net Children Go Mobile”, em 2014, 35% das crianças portuguesas entre os 9 e 16 anos usavam um smartphone diariamente para aceder à internet, e 60% faziam-no através do computador portátil. Em 2018, as duas percentagens foram de 87% e 41% respetivamente.

Cristina Ponte assinala que a partir de certa idade a criança sente necessidade de socializar através do digital. “Deixam de ser apenas consumidores de conteúdo e começam a partilhá-lo e a discutir os interesses que têm.” Com isso surgem as aplicações de mensagens como o WhatsApp e o Messenger, do Facebook. Os dados do estudo “EU Kids Online Portugal” comprovam esta evolução de comportamentos: 60% dos rapazes entre os 9 e os 12 anos falam diariamente com familiares e amigos, e 49% vão a uma rede social. Nas raparigas, estes números são maiores: 68% e 59%, respetivamente. A explicação para esta diferença, diz Cristina Ponte, está no facto de as raparigas serem por norma “mais comunicativas”: gostam das redes sociais porque lhes permitem falar e acompanhar a vida das pessoas que conhecem. Por outro lado, os rapazes preferem os jogos: “Estão mais preocupados com a performance, querem competir entre si, passar para o nível seguinte, ganhar.” A empresa de análise de dados Newzoo estima que 11,5% de todos os gamers no mundo têm entre 10 e 16 anos.

COMUNICAÇÃO E ENTRETENIMENTO

É na altura do início da adolescência que a criança começa a ganhar ídolos online. São sobretudo youtubers, com conteúdo de entretenimento sobre videojogos, humor, ou até reviews de produtos tecnológicos e de beleza. O ranking dos canais do YouTube mais vistos em Portugal é prova disso: no top 10 estão nomes como SirKazzio, D4rkFrame, wuant, Fer0m0nas ou Windoh, todos eles influencers de língua portuguesa. SirKazzio, youtuber brasileiro e primeiro nome na lista, tem mais de cinco milhões de subscritores. Porém, este contacto acaba por nunca substituir a vida real. “ O digital não esgota o ambiente onde os jovens vivem, e não há nada como o contacto face a face. Os amigos e o ambiente escolar são sempre tão ou mais importantes”, ressalva Cristina Ponte.

“O PRIMEIRO CONTACTO COM A INTERNET ACONTECE QUASE SEMPRE ATRAVÉS DE VÍDEOS MUSICAIS E EDUCATIVOS”, DIZ CRISTINA PONTE, PROFESSORA NA FCSH DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA E ESPECIALISTA EM CRIANÇAS E MEDIA

As atividades online vão-se diversificando ao ritmo da adolescência, mas os dados mostram que as tarefas que exigem competências técnicas — fazer vídeos ou músicas próprias, por exemplo — são sempre uma minoria. Só 10% dos rapazes portugueses entre os 13 e os 17 anos criam com frequência conteúdo para partilhar online; 5% no caso das raparigas. “Há uma tendência para os jovens se tornarem disseminadores dos trabalhadores dos outros, nomeadamente influencers youtubers”, aponta Cristina Ponte. Ao fazerem-no estão a partilhar os seus próprios gostos e traços de personalidade. Além disso, usam pouco a internet para discutir política e questões sociais (só 6% dos jovens entre os 9 e os 17 anos o faz), ou envolverem-se em campanhas ou protestos cívicos (4%). No entanto, há mais jovens a usar a internet para procurar notícias e fazer os trabalhos de casa. As duas atividades registam uma percentagem de 27%. O “EU Kids Online” sublinha ainda: a par da Grécia (50%), Portugal é o país da UE onde mais crianças entre os 11 e os 16 anos frequentemente reportam um “uso excessivo da internet”.

Num tempo em que crianças e jovens têm o mundo inteiro na ponta dos dedos, Cristina Ponte nota que “o facto de crescerem rodeadas pela tecnologia não significa que desenvolvam competências sociais e criativas. Soft skills como a empatia pelo outro têm sempre de ser trabalhadas.” Está em marcha um novo estudo a nível europeu — o “YSkills” — que durante quatro anos vai acompanhar em tempo real jovens dos 12 aos 17 anos para perceber as aptidões que a internet permite desenvolver, bem como os riscos associados (ciberbullying, dependência dos ecrãs, etc.). Um relatório publicado já em 2020 pelo Colégio de Psiquiatras Britânico deixa o alerta: para analisar a fundo os benefícios e riscos da internet e das redes sociais nas crianças e adolescentes é necessário que as grandes empresas tecnológicas divulguem mais dados, quer sobre os utilizadores quer sobre os algoritmos utilizados. Cristina Ponte concorda e remete para as pressões que têm sido feitas pela Comissão Europeia nesse sentido. “As empresas não podem ser opacas, têm de ser escrutinadas. Até pela questão da privacidade. As crianças de hoje estão a deixar uma pegada online que será difícil de apagar quando forem adultas.”

AS CRIANÇAS PORTUGUESAS E A INTERNET

Em percentagem

USO DIÁRIO DAS REDES SOCIAIS EM PORTUGAL

Por idade, em percentagem

CANAIS DE YOUTUBE PARA CRIANÇAS MAIS POPULARES DO MUNDO

Por número de visualizações, em mil milhões

*NURSERY RHYMES **NURSERY RHYMES & KIDS SONGS

O QUE MAIS FAZEM AS CRIANÇAS PORTUGUESAS NA INTERNET?

Em percentagem

Fonte: Expresso