Início Coronavírus - Covid-19 Esperança: Ordem estuda fármaco para conter vírus

Esperança: Ordem estuda fármaco para conter vírus

1951
0

Esta semana, no maior segredo, um grupo de peritos foi consultado pela Ordem dos Médicos (OM) sobre a possibilidade da utilização preventiva de hidroxicloroquina para conter a expansão da pandemia de covid-19 em Portugal. As reuniões ainda não terminaram e o assunto já chegou à Presidência da República, mas a decisão não está tomada devido à falta de ensaios clínicos e evidência científica.

A hidroxicloroquina é usada há quase seis décadas em doentes com artrite reumatoide e outras patologias autoimunes, mas pode ser determinante para conter a pandemia ao proteger pessoas com alto risco de infeção. Diminuindo o tempo de permanência do vírus no organismo, o fármaco retarda a propagação da doença e, desta forma, poderia funcionar como um substituto para uma vacina que ainda vai demorar mais de um ano a chegar ao terreno.

A decisão é polémica e terá de resultar da vontade política do Governo, mas só avançará se a Ordem dos Médicos recomendar esta opção. Por enquanto, as principais autoridades de saúde estão divididas. O Expresso sabe que especialistas em infecciologia, pneumologia e medicina interna são favoráveis, mas o pioneirismo da proposta está a ser um obstáculo noutros quadrantes. Para já, o Infarmed decidiu, segunda-feira, impedir as exportações desta substância, a não ser que haja concordância prévia da Autoridade Nacional para o Medicamento.

Uso preventivo desta substância visa evitar a falência do sistema de saúde. Até agora, só a Índia avançou com a medida

O assunto começou a ser estudado no início do mês, mas o primeiro sinal público de que a hidroxicloroquina poderia ser relevante para complementar as medidas de contenção em vigor foi a divulgação no último domingo de um artigo de opinião do ex-presidente do Conselho de Administração do Hospital de São João, no Porto. No texto, publicado no “Jornal de Notícias”, António Ferreira alertava para a “catástrofe que se avizinha, quer do ponto de vista da saúde quer do ponto de vista social e económico” e para a “mais que previsível falência do sistema de saúde”, propondo o uso deste fármaco como forma de prevenção. Ao Expresso, sublinha que “o risco-benefício é francamente favorável” (ver entrevista).

A sugestão do médico é que todos os doentes que não apresentem contra-indicações para tratamento com hidroxicloroquina e que tenham diagnóstico clínico de infeção, confirmado ou não por teste laboratorial, recebam o tratamento precoce com esta substância, quer estejam internados ou em casa. Assim como todos os seus contactos e as pessoas com risco elevado de mau prognóstico para a covid-19, nomeadamente os idosos, e também os profissionais de saúde que tratam de doentes infetados e os efetivos das forças de segurança.

Ao proteger pessoas de alto risco, a hidroxicloroquina poderia funcionar como substituta da vacina

A avançar, o mais provável é que esta medida de prevenção surja sob a forma de um ensaio clínico de fase quatro, ou seja, com critérios menos rígidos, envolvendo, de forma voluntária, médicos e enfermeiros com idades mais avançadas e, por isso, duplamente fragilizados perante a epidemia. Ao Expresso, Miguel Guimarães, bastonário da OM, reconhece que “a medida é revolucionária” e que todos os cuidados têm de ser tomados antes de decidir pela utilização profilática da hidroxicloroquina, para que não se provoque uma corrida às farmácias. Sobretudo, porque esta substância já está a ser utilizada, por indicação da Direção-Geral da Saúde, nos doentes internados com covid-19 para abrandar a evolução da infeção, evitando o ingresso em cuidados intensivos e a necessidade de ventilação (ver texto em baixo).

O problema é que a eventual eficácia da medida depende da precocidade com que a decisão é tomada e, neste momento, tudo está a ser avaliado, como a capacidade de armazenagem e produção da substância em Portugal e até o recurso ao Laboratório Militar.

POLÉMICA MUNDIAL

O Governo francês publicou na quinta-feira um decreto assinado pelo ministro da Saúde determinando que a prescrição de hidroxicloroquina é possível se os médicos considerarem útil, sem ter de se esperar pelos resultados dos ensaios clínicos. Também as autoridades de saúde indianas autorizaram a utilização desta substância para prevenir o crescimento da infeção entre a população de alto risco, nomeadamente médicos. A decisão foi tomada no mesmo dia em que o número de casos positivos naquele país chegou a 415 e foi confirmada a sétima morte provocada pela covid-19. Além da profilaxia química, o Governo indiano determinou o confinamento da população em 75 distritos, incluindo as principais cidades, onde, até 31 de março, só podem funcionar os serviços essenciais.

A esperança à volta da hidroxicloroquina começou com a divulgação dos resultados de um estudo francês, no qual doentes infetados com o novo coronavírus tiveram a carga viral reduzida após o recurso à medicação. Situação semelhante terá acontecido na China, com um teste envolvendo 100 doentes. Mas a polémica subiu de tom quando o Presidente dos Estados Unidos se mostrou muito otimista e classificou a substância como um potencial “game changer”, ou seja, capaz de alterar o rumo da pandemia. A consequência foi uma corrida às farmácias e, por isso, especia­listas norte-americanos, entre os quais um consultor da Casa Branca, sublinharam a necessidade de serem feitos mais estudos antes de se aconselhar a sua utilização generalizada. Mas, à cautela, a autoridade do medicamento norte-americana (FDA) autorizou quinta-feira que a hidroxicloroquina fosse produzida pelas farmácias.

Alguns hospitais brasileiros também receberam autorização do Governo federal para iniciar os testes com esta substância para o tratamento da covid-19. Por seu lado, embora autorize a utilização terapêutica, a Agência Espanhola de Medicamentos desaconselha o uso profilático fora de ensaios clínicos. O aviso foi feito depois de médicos terem recorrido à substância de forma preventiva num país onde 9500 profissionais de saúde estão infetados.

TRÊS PERGUNTAS A António Ferreira

Médico e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

Quais os potenciais benefícios do uso preventivo da hidroxicloroquina?

Não existe evidência científica que sustente o uso na profilaxia da infeção pelo novo coronavírus. A evidência existe para o tratamento de infetados. No entanto, a Índia já aprovou a hidroxicloroquina para a prevenção da infeção em profissionais de saúde e em contactos próximos de doentes. Bélgica, Coreia do Sul e China aprovaram-na para o tratamento. O medicamento pode diminuir, nos doentes, o tempo de infecciosidade e evitar a infeção de contactos e doentes de alto risco, assim como de profissionais de saúde e outros essenciais ao funcionamento do Estado. Pode ajudar a reduzir a contagiosidade, retardar o pico do surto e diminuir a pressão sobre o sistema de saúde, que entrará em falência se nada mais for feito.

Quem deveria tomar esta medicação?

Em função da disponibilidade e da capacidade de fabricação nacional, deve ser usada para o tratamento dos doentes e a profilaxia dos contactos, dos profissionais de saúde, dos de elevado risco e dos essenciais ao Estado.

Quais os riscos potenciais?

Este é um fármaco muito bem tolerado, usado por longos períodos em doentes com patologia reumatológica. Talvez os mais preocupantes sejam os efeitos oculares ou cardíacos. Em todo o caso, face aos potenciais benefícios, creio que o risco-benefício é francamente favorável. É fundamental referir que, mesmo que a proposta seja aprovada, não deve diminuir a intensidade e a obrigatoriedade de respeitar todas as medidas em vigor nem transmitir uma falsa sensação de segurança. É importante que os portugueses não comprem ou tomem hidroxicloroquina sem conselho médico e nunca antes de as autoridades de saúde o recomendarem. C.M.

Fonte:Expresso