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Educação do avesso ou o avesso da Educação?

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Mais de 1 bilião de estudantes viu o seu quotidiano alterado nestes tempos de pandemia. Poderemos, por certo, multiplicar a imaginação até ao infinito para adivinhar as histórias que, até aqui, se viveram. Mas o que teremos aprendido com essa diversidade de experiências para repensar a educação formal? Que histórias podemos partilhar destes tempos em que a Educação se virou do avesso e expôs a face que habitualmente não vemos, mas que mais de perto nos toca a pele?

Apesar das rápidas diligências de muitos governos na disponibilização pronta de conteúdos através da televisão, da internet e da rádio, a aprendizagem viabilizou-se num contexto bottom-up nas mais diferentes geografias. Com efeito, foram fundamentalmente as comunidades escolares, as famílias e as redes informais que garantiram a subsistência deste modelo de transição, como alguns estudos nacionais sobre a perceção de professores sobre o ensino a distância nos têm mostrado. Mas de que falam, afinal?

Ouviram a história da criança que, na impossibilidade de assistir a uma aula por Zoom, pediu a um colega de sala que fizesse uma videochamada consigo, via WhatsApp, para acompanhar a lição? Ou a daquela mãe que pediu ao vizinho para lhe conceder acesso à sua rede sem fios, mediante o pagamento de uma taxa, para que o seu filho pudesse participar nas aulas síncronas? Ou a do menino que diariamente se deslocava de carro com a mãe até debaixo de uma azinheira, para que, à sombra desse fruto de internet, pudesse participar nas aulas e enviar os seus trabalhos?

Estes exemplos mostram como qualquer proposta para a educação formal – incluindo ensino a distância, misto (presencial e a distância) ou em qualquer lugar – a ser agora desenhada por governos, empresas e indústrias terá inequívoca e intencionalmente de contemplar as vozes e discursos daqueles que sempre fizeram dos cenários de aprendizagem horizontes de desenvolvimento cognitivo, emocional e social: professoras e professores, mães, pais e estudantes. Ainda mais nesta fase em que famílias e docentes se metamorfosearam para recriar estratégias de aprendizagem, garantindo a participação, evitando reforçar clivagens relativamente àqueles que já estavam na margem difícil do ensino, promovendo o envolvimento emocional possível, a partir de novos meios de partilha e códigos de comunicação. Tudo isto enquanto se confrontavam com a urgência do seu próprio desenvolvimento profissional, perante um universo de recursos digitais de acesso livre, mas sem qualquer curadoria que os orientasse numa experimentação com propósito. Não podemos esquecer que esta (re)ação lhes concedeu um reforço de autoridade e agência, enquanto modelou e credibilizou estratégias que poderão ser o motor da resistência para a concretização de um outro modelo educativo, se este não considerar o ‘avesso’ de aprender. Escutar as histórias que se esquecem no escudo confortável das estatísticas poderá ser a tour de force no providenciar de experiências de aprendizagem, desenvolvimento e resiliência de longo termo, substancialmente mais capazes de responder às pessoas, às relações e às suas circunstâncias. Daí a aposta no diálogo e na ação concertada entre governos, setor privado, investigadores, inovadores e comunidades educativas. Esse salto de impala não será digital, mas um produto da consciência partilhada no alvoroço, na tensão e na comoção. O que mudou não foi a ordem da natureza, mas, como diz Jean-Luc Nancy, «a natureza da ordem».

Ana Mouta

Psicóloga da Educação. Especialista de Pedagogia da jp.ik