Início Educação Depois da Covid, o bullying. O que deve fazer se o seu...

Depois da Covid, o bullying. O que deve fazer se o seu filho for posto de parte na escola?

2345
0

“Ó coroooona…”. Eduardo não teve Covid-19, mas na sua turma de 6.º ano há colegas que já estiveram de quarentena. No regresso à escola, nem todos abriram os braços para os receber. “São os do costume… Chamam-lhes coronas e gozam com eles”, conta o aluno de 11 anos de uma escola do concelho de Cascais. Quanto a si, diz que não os recebeu nem bem, nem mal: “Não são meus amigos”, diz como quem encolhe os ombros.

Numa outra escola em Telheiras, Lisboa, a história de Vitória, de 12 anos, é a oposta. Quando a Clara começou a faltar, suspeitaram logo que seria por Covid-19. Confirmou-se. O tio estava positivo e o teste da aluna do 7.º ano também teria o mesmo resultado. A turma inteira acabou por fazer quarentena profilática e, mesmo à distância, tentaram sempre apoiar a colega. “Eu sou quase a melhor amiga dela, somos três que andamos sempre juntas. Ela, coitadinha, teve de se isolar e nós queríamos que se sentisse bem. Foi super bem recebida quando voltou, depois de ter o teste negativo.”

A história relatada por Eduardo — onde as agressões nunca passaram das verbais — será, segundo pais e diretores de escolas, uma exceção à regra. O Ministério da Educação não tem, até à data, qualquer registo de queixas de crianças vítimas de bullying depois de regressarem de quarentena. As duas associações de diretores e a confederação de associações de pais (Confap) também não têm conhecimento de problemas deste género nas escolas, embora assumam que é uma preocupação dos encarregados de educação.

Se casos de bullying serão uma minoria — ou seja, situações onde os alunos usam a força física ou ameaças verbais para intimidar colegas de forma frequente —, o estigma existe e é real, diz Sofia Ramalho, vice-bastonária da Ordem dos Psicólogos. “Há um estigma associado à doença por medo ou insegurança de que mesmo que a pessoa já não esteja contaminada ainda possa contaminar. Esta preocupação não é só da parte dos jovens, mas também dos adultos. Os pais podem evidenciar algum estigma e apresentar resistência à proximidade face às crianças que estiveram infetadas.”

Os empurrões que ninguém vê. O primeiro passo é avisar a escola

A história de Eduardo nunca foi motivo de conversa entre a família à mesa de jantar. Só quando foi questionado sobre isso é que contou o que viu nos corredores da escola, algo que o próprio acaba por desvalorizar por serem insultos feitos por colegas que procuram sempre algo com que implicar. Essas trocas de galhardetes entre alunos, que não ganham dimensão, nem se tornam repetitivas, passam muitas vezes despercebidas aos olhos dos professores e assistentes operacionais.

No Agrupamento de Escolas de Carcavelos, onde Eduardo estuda, a diretora Maria da Graça Oliveira tem atualmente oito alunos em casa, depois de ter tido três na semana anterior. “Tudo corre tranquilamente. Não temos conhecimento de que tenha havido problemas com o regresso dos alunos, e os diretores de turma fazem o seu trabalho para precaver situações de bullying”, conta ao Observador. Aos seus ouvidos não chegaram queixas de alunos e a única alteração que sente é que os pais estão mais ansiosos. “No fundo, não são só os pais, estamos todos mais ansiosos com a situação da pandemia, mas não temos mais faltas do que é habitual.”

Seja um empurrão, um insulto ou uma situação mais grave e repetida, quando os pais tomam conhecimento da situação devem de imediato avisar a escola. Este problema, que nos casos de Covid passam mais pela estigmatização do que pelo bullying, só tem uma solução: informar os alunos sobre a doença e garantir que eles a compreendem.

“Se nos concentramos no papel dos pais, deve haver ativação da escola para o que está a acontecer”, diz a psicóloga Sofia Ramalho. “Aquilo que é preciso trabalhar é a literacia sobre as questões da saúde psicológica e da Covid-19. Quanto menos informadas os alunos estiverem sobre a pandemia, tanto mais vão evidenciar discriminação ou estigma.”

No caso dos jovens, frisa, o impacto de qualquer comentário vindo dos pares é sempre grande, também porque é uma idade em que os processos de socialização têm muita importância. “Um comentário vai ter mais impacto em mim e essa situação é escalada porque não é só um colega, é um grupo de colegas, há uma identidade de grupo e a importância que dou à opinião do outro é muito maior.”

Parar o estigma. Apoiar a vítima, trabalhar os agressores

Estar ao lado do aluno que foi discriminado não basta e Sofia Ramalho afirma que neste tipo de situações é preciso trabalhar todo o grupo. Se assim não for, os comportamentos de discriminação podem perpetuar-se e a situação pouco ou nada muda.

“O apoio não deverá ser meramente individualizado. É possível que o jovem que se sente discriminado possa precisar de ajuda dos adultos, dos pais e dos professores, para lidar com o problema. Se for uma situação mais grave poderá até precisar de apoio do ponto de vista psicológico, mas também é preciso diminuir os comportamentos de discriminação dos outros”, sublinha a psicóloga.

Com uma pandemia dinâmica como a que vivemos, em que a informação está sempre a ser atualizada, é fundamental manter toda a comunidade escolar informada. E é nessa tecla, que Sofia Ramalho insiste: informar, informar, informar.

“É preciso intencionalmente e sistematicamente trabalhar todos os miúdos. Uma sensibilização só no início do ano não chega. É preciso um pacote de ações. Se não vou obtendo informação sobre a doença, se não compreendo bem a doença, não vou receber tão bem o meu colega quando ele voltar da quarentena”, argumenta a vice-bastonária da Ordem dos Psicólogos.

A informação sobre o coronavírus que provoca Covid-19, relembra a psicóloga, está sempre a ser atualizada e se não for prestada a informação correta e adequada não é possível combater o estigma.

“Há informação ambígua, como aconteceu com o uso de máscara (se devíamos ou não usar), e se ela for ambígua gera insegurança e incerteza. Como vivemos uma situação ainda em estudo, isso implica uma atualização constante da população porque se a comunicação de risco não for efetuada da melhor forma aumentam também os comportamentos de risco”, argumenta Sofia Ramalho.

Entre os pais a ansiedade cresce e o fim do teste negativo não ajuda

Em Cinfães, centenas de alunos já estiveram de quarentena, num universo de 600 estudantes que frequentam a EB 2,3 General Serpa Pinto. No agrupamento liderado por Manuel Pereira não há queixas de bullying ou de outros problemas similares e ao também presidente da ANDE, associação nacional de dirigentes escolares, não chegaram denúncias de outras escolas.

“Aqui são tantos os casos que não dá para assustar”, ironiza o dirigente. “Acaba por se encarar a situação com naturalidade e temos trabalhado muito as crianças para evitar esse tipo de situações.”

Mais perto do litoral, também no norte do país, em Vila Nova de Gaia, Filinto Lima já deu por si a pensar no problema da discriminação. No agrupamento Dr. Costa Matos já houve alunos a serem enviados para casa, chegaram a ir turmas inteiras, o que deixou alguns pais ansiosos. Atualmente há sete alunos em isolamento. “Uma mãe colocou-me essa questão, porque agora, com a mudança de regras, os miúdos já podem voltar para a escola sem teste negativo. O problema dela era que o filho, depois de ter estado em isolamento profilático e não tendo feito o teste, fosse ostracizado quando regressasse à escola”, conta o também presidente da ANDEP, associação de diretores de agrupamentos e escolas públicas. Apesar disso, e de revelar que também um colega diretor lhe colocou a mesma questão, diz que tudo está a correr bem.

“É uma preocupação dos adultos, mas não tenho tido problemas. Claro que haverá exceções, mas os nossos jovens têm revelado uma elevada consciência cívica no acolhimento desses alunos”, acrescenta o diretor.

A preocupação dos adultos é também sentida nos colégios Fomento (Planalto, Mira Rio, Cedros e Horizonte) ligados ao Opus Dei e situados em Lisboa e no Porto. “Nos quatro colégios já tivemos casos em várias idades diferentes, desde a primária à secundária, e não temos experiências negativas”, conta Margarida Garcia dos Santos, administradora das escolas. “O que vemos é que quando mandamos um email a avisar de algum caso, os pais reagem logo e pedem mais informação. Querem saber qual foi o último dia em que a criança esteve no colégio, se está sentada perto do filho… Querem mais detalhes. Como os pais deixaram de poder entrar no colégio, por causa da pandemia, ficam mais inseguros. Antes, entravam, viam, sabiam. Agora é diferente. Apesar disso, mesmo nos grupos de WhatsApp, mais informais, não temos registo de posições mais inquisitoriais.”

Se esta é a perceção do lado dos diretores, não muda quando são os encarregados de educação a falar. “Há pais que ficam preocupados quando os filhos regressam à escola depois da quarentena, receiam que os colegas os ponham de parte. E este receio sentiu-se mais quando deixou de ser necessário apresentar um teste negativo para voltar. Apesar disso, não recebemos até agora nenhuma queixa de agressão”, esclarece Jorge Ascenção, presidente da Confap, confederação de associações de pais.

Nos primeiros dias de outubro, as regras para voltar às escolas depois de um teste Covid positivo mudaram. Os alunos assintomáticos e os doentes com sintomas ligeiros passaram a poder regressar ao fim de dez dias de quarentena, sem a realização de um novo teste, tal como os restantes cidadãos infetados. Obrigatório é não ter febre nem sintomas a piorar. “Agora, os pais já perceberam e foram interiorizando esta regra, mas não foi no imediato”, diz Jorge Ascenção.

Para perceber esta mudança, insiste a psicóloga Sofia Ramalho, é preciso ter acesso à informação e compreender o que ela significa. “A literacia da população tem de ser generalizada, os pais têm de saber mais sobre a doença”, detalha, lembrando que em situações como esta há uma certa desconfiança sobre se o aluno que não fez o teste está ou não está infetado e se pode ou não contagiar os colegas.

Por último, recorda um alerta já feito pela Ordem dos Psicólogos: a fadiga da pandemia está a instalar-se na população. “Do ponto de vista geral, na comunidade, há um cansaço face à situação de pandemia que faz com que haja menos tolerância, menos cumprimento das regras, e que diminuam os comportamentos pró-saúde. Se já estou muito cansado de cumprir as regras, elas deixam de ter a mesma importância para mim e não vou cumpri-las.” E os jovens, termina Sofia Ramalho, não são exceção.

Observador