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Bom ano para todos – Carlos Santos

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Começo a ceder ao sono. Ao cansaço, o meu corpo já se rendeu faz tempo. As dores articulares relembram-me que já não tenho vinte anos e foram ultrapassados os limites que o meu corpo tem ao meu dispor.

Depois de uma noite em claro a terminar plantas de acessos e de circulação integradas no plano de contingência, deleito-me em deixar-me levar pelo sono. Mas não sem antes desnudar os pensamentos que tenho guardado em segurança neste contaminado ambiente inseguro.

 

Foram uns dias intensos a correr contra o relógio. Elaborar planos e marcar sinalização horizontal e vertical interior e exterior ao longo de centenas de metros, e o peso da responsabilidade sobre muito mais que ainda há a fazer, têm consumido as horas dos meus dias. E como eu e o meus colegas próximos, milhares de outros professores estão a desenvolver um esforço inimaginável para que na próxima semana possamos receber os nossos alunos com a máxima segurança que a boa vontade pode oferecer, pois estamos a fazer o impossível com os parcos meios financeiros de que as escolas dispõem. Aparentemente, a maioria delas nem verba suficiente dispõe para apetrechar as salas com gel desinfetante, quanto mais para tudo isto… Sim, esta é a realidade… mas quem não conhece a arte e o engenho do nosso povo capaz de fazer milagres, muitas vezes apelidado de “desenrascanço”, mas que é muito mais do que simplesmente isso?

 

Tudo o que é preciso ser feito partilha do mesmo prazo limite – é para ontem. O tal inimigo invisível não faz uma pausa e agora cabe aos professores a mais difícil missão que se pode exigir a uma pessoa. Nas escolas já se consegue adivinhar um silêncio que poucos ousam quebrar. O corpo docente mais envelhecido da europa, tem consciência do risco acrescido que irá correr, mas não vira a cara à luta e está a marcar presença como sempre fez quando muito se esperava dele. E desta vez não é só a preparação de um ano escolar atípico com a dificuldade acrescida de lecionação, mas também um medo que é impossível descrever. As crianças têm aquela beleza da inocente inconsciência que outrora também nós tivéramos e, no meio das suas brincadeiras, pouco se aperceberão. Mas pais e professores sabem que é a nós que cabe zelar para que tudo corra pelo melhor. Tal como quem vai ao mar ciente de que se pode molhar, assim vamos nós para as escolas nos dias que se seguem. Em todo o caso, se não falarmos dessa coisa e se o trabalho não nos der tempo para pensar, o medo acabará por ficar retido para lá dos portões da escola e uma aparente normalidade acabará por prevalecer. Sim, só o medo poderá igualar a inconsciência e nos vencer.

 

Num meio densamente povoado, rodeado de centenas de crianças, quase sempre em espaços exíguos que não respeitam o distanciamento de segurança aconselhado pela DGS, e a tentar cumprir normas quase impossíveis de colocar no terreno, nenhum de nós se poderá dar ao luxo de ser uma pessoa simples. Iremos abraçar o ato homérico de ensinar as nossas crianças e jovens no melhor ambiente possível e incutir nelas regras de cidadania, de higiene e segurança que nunca representaram tanto para todos como nestes dias difíceis.

Aos pais, cabe-lhes confiar-nos os seus filhos, o compromisso de serem responsáveis e um exemplo de cumprimento das regras antivíricas que não coloquem em causa a vida de todos os outros.

Aos nossos filhos, pais e cônjuges, resta-lhes a esperança de que nada de mal nos aconteça e em breve esta tempestade não passe de uma recordação antiga.

 

Consideradas as circunstâncias, o que nos leva, então, a irmos para as escolas fazer o que sempre fizemos, mas com maior exigência e risco?

Talvez por neste momento sermos os únicos capazes de fazer funcionar o país com alguma normalidade?

Quem sabe, não seja pelo facto de a paragem das escolas arruinar a nossa economia?

Quiçá, pela importância dos alunos não perderam a sua instrução hipotecando o seu futuro?

Ou, talvez, por termos a consciência de que não podemos desistir das nossas vidas, de viver, de continuarmos e de nos deixarmos vencer pela pandemia, não pela doença, mas pelo medo.

Sabemos ao que vamos, temos receio, mas iremos dar o nosso melhor.

Embora – como sempre aconteceu no seio da miséria moral circundante – se venha a fazer fila para nos caluniarem pelas nossas falhas e ninguém nos dê o devido valor, nem o reconhecimento pelo extraordinário trabalho que desenvolvemos no Ensino a Distância, nem valorize esta ingressão por um caminho íngreme e desconhecido, neste momento, prevalece a sábia loucura de assumirmos que ninguém mais o poderá fazer. Certamente, não por sermos inconscientes, mas por ainda possuirmos esta admirável capacidade de perseverança e resiliência que nos tirou das cavernas e nos trouxe até aqui. E por acreditarmos no futuro e de podermos inspirar a próxima geração transmitindo-lhe o nosso maior legado – o conhecimento e a esperança.

Bom ano para todos

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